A rotina de preparação para concursos de beleza e ensaios fotográficos
passa longe da vida que Ana Clara Ferrares, de 10 anos, levava há apenas
dois anos. A estudante é neta de traficantes presos no Espírito Santo e
enfrentou a perda da visão do olho direito em um acidente. Hoje, ela se
define como uma criança feliz, após ser adotada aos oito anos pelo
missólogo Guto Ferrares, que é homossexual. Em abril deste ano, ela foi
eleita Mini Miss Brasil Oficial 2013, em concurso realizado em São
Paulo, uma conquista que a menina levou para o pequeno município de
Aracruz, no Espírito Santo.
No Espírito Santo, a oportunidade que Ana Clara teve é bem diferente da
realidade de crianças com mais de três anos que esperam para ser
adotadas. Em todo o estado, segundo o Tribunal de Justiça (TJ-ES), 132
crianças e adolescentes esperam por um novo lar e o número de
pretendentes habilitados passa de 750, mas em geral, a adoção de
recém-nascidos e menores de dois anos é preferência entre esses pais.
Para incentivar essa ação, foi criada a I Campanha de Incentivo à Adoção
Tardia, no município da Serra, na Grande Vitória, que acontece de 19 a
24 de maio.
O pai adotivo Guto Ferrares, de 25 anos, contou que os pais biológicos
da filha eram foragidos da polícia e ela morava com os avós, em
Colatina, no Noroeste do estado, mas eles tinham envolvimento com o
tráfico de drogas e foram presos. Ana Clara acabou morando com vizinhos
por algum tempo.
Mas as dificuldades não pararam por aí. “Quando ela morava no bairro São
Judas Tadeu, em Colatina, um bandido da comunidade foi preso e os
moradores resolveram soltar fogos para comemorar. Um dos foguetes caiu
em cima da casa que ela morava e o telhado explodiu. Um pedaço bateu
direto no olho direito dela e a cegou”, contou Guto.
A história de Ana Clara chegou aos ouvidos do pai adotivo através de uma
amiga da mãe dele, que é moradora de Colatina. Guto contou que se
comoveu com a história e como já tinha vontade de ser pai, mas nenhuma
pretensão de se casar, resolveu ver se havia alguma maneira de adotar a
garota. “Três meses depois do acidente, a menina fez uma cirurgia no
olho e foi nesse dia que a gente se conheceu. Fui bem devagar com ela,
de início não falei que eu a adotaria, falei que era um amigo e que ela
passaria uns dias comigo, para ver se gostava”, lembrou.
Para a garota, as dificuldades foram superadas com a ajuda de um grande
aliado: o carinho do pai adotivo. “A adaptação foi fácil porque a minha
nova família me recebeu de um jeito muito carinhoso, muito diferente do
que eu recebia na vida que tinha antes. Com meu pai foi ainda mais
especial, porque na verdade eu nunca conheci meu pai biológico. Ele é a
pessoa mais importante da minha vida e hoje tenho uma família completa”,
disse a menina.
Guto, que é homossexual, chegou a pensar que seria difícil explicar para
Ana Clara que era um pouco diferente da maioria dos pais. “No início,
ela não sabia o que era gay. Expliquei à ela que era um pouquinho
diferente do que ela estava acostumada a ver, que não namoraria uma
mulher. Acredito que a criança é o que os pais passam para ela, adquire
valores. Eu sou um pai bem rígido, quero o melhor para ela, portanto em
casa não existe preconceito e nem falta de educação”, falou.
Ajuda para recomeçar
A menina simpática, descontraída e vencedora de concursos de beleza
chegou à casa de Guto totalmente retraída, sem conseguir conversar muito
com as pessoas. O pai, então, procurou uma ajuda psicológica para
ajudar a filha a superar os traumas de infância.
“Hoje ela é uma criança totalmente diferente, bem resolvida. Na verdade,
ela fez um tratamento psicológico só por seis meses, foi uma espécie de
preparação para a nova vida, um empurrão. Ela realmente deixou tudo o
que viveu para trás, foi muito forte, e passou a me tratar como se eu
sempre tivesse sido o pai dela”, contou Guto Ferrares.
Guto também comentou as mudanças que a paternidade trouxe para sua vida.
“Eu não paro para pensar que eu fiz parte da evolução dela, penso no
que construímos juntos, que ela tornou minha vida mais especial. Hoje
ela trata a dificuldade da visão como superação, encara a diferença dela
como algo positivo, isso é maravilhoso.”
Mini Miss Brasil
Já adaptada à nova casa, Ana Clara Ferrares contou ao pai que sempre
teve o sonho de ser modelo, mas se considerava aleijada por ser cega de
um olho. O apoio e o conhecimento de Guto foram essenciais para que a
menina não desistisse de suas ambições. “Sou missólogo, um preparador de
beleza de misses e misters, então tive segurança para conversar com ela
sobre isso. Expliquei que ela não era aleijada, que era bonita e
poderia ser o que quisesse. Contei que existem modelos de todos os
tipos, até mesmo uma que é surda”, explicou.
Um dia, a menina pediu para começar a competir em concursos de miss,
acreditando que o pai seria o primeiro a apoiá-la, mas essa não a
primeira reação. “Tinha medo que ela perdesse algum concurso e ficasse
para baixo, não queria vê-la sofrer. Mas ela cabou contando tudo para a
psicóloga dela, que me ‘deu um puxão de orelha’, falou que seria
importante para ela”, disse.
Desde então, a garota passou a colecionar títulos. Em 2011, ela ganhou o
Mini Miss Espírito Santo 2012. No ano seguinte venceu o Mini Miss
Brasil Fotogenia 2013 e foi chamada para a seleção do Mini Miss Espírito
Santo Oficial, que também venceu. No dia 27 de abril deste ano, ela
ganhou o Mini Miss Brasil Oficial e agora vai disputar, na categoria
dela, o concurso de Miss Universo em Buenos Aires, no fim deste ano.
Ana Clara gostou tanto da experiência que agora faz parte de seus
projetos para o futuro continuar desfilando. “Eu descobri que adoro
participar de concursos e desfiles e quero seguir uma carreira.”
Adoção tardia
Segundo a juíza da Vara da Infância e Juventude da Serra, Gladys
Pinheiro, as pessoas dispostas a adotar querem recém-nascidos ou bebês.
“Nossa cultura já está mudando, mas ainda precisamos trabalhar e
repercutir a importância dessa ação com as crianças mais velhas e os
adolescentes. Geralmente, elas costumam ficar em abrigos até atingirem a
maioridade”, disse.
Mas essas situação não se encaixa no caso de Guto e Ana Clara. Foi de
uma relação inical de amizade que surgiu o amor de pai e filha, sem se
importarem se não tinham o mesmo sangue. A idade da menina, então com
oito anos, não foi um empecilho. “O melhor de ser pai é poder passar
todo o meu carinho e o amor para ela, e esses sentimentos não medem
idade e nem deixam espaço para preconceitos”, disse.
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